“Original, histórias de um bar comum” é, por assim dizer, o próximo item a ser incorporado ao cardápio do bar que já nasceu um clássico, não só pelas homenagens que desde sempre prestou aos célebres botecos de São Paulo e do Rio mas também por que é um honrado discípulo de todos eles. Trata-se de um livro de autoria do jornalista atleticano Nirlando Beirão, com fotos de Rômulo Fialdini e prefácio do publicitário Washington Olivetto. “Nosso propósito principal é devolver ao universo dos bares e botequins uma dosezinha de tanto o que dele temos absorvido nesses últimos 11 anos”, conta Edgard Bueno da Costa, um dos proprietários do bar e um dos pais da idéia.
No livro – ainda no prelo, com lançamento previsto para agosto de 2007, mas do qual este blog antecipa um aperitivo com exclusividade –, Beirão conta a vida de um, o Original, a partir de passagens curiosas de personagens bons de copo em alguns dos melhores bares do mundo. A quem se encanta por histórias assim, é um texto de arrepiar. Quero dizer, só poderia ter sido escrito por um globetrotter dos balcões como Nirlando que, sim, esteve em todos eles, a começar pelo mitológico Harry’s Bar, de Veneza, citado no trecho a seguir.
“Personagem do Harry’s Bar, tanto na ficção quanto na realidade, Ernest Hemingway vai freqüentar muito este nosso livro, a partir de agora – ainda que muitas vezes trôpego, fazendo ziguezague, sempre de ressaca.
Hemingway era um homenzarrão de quase dois metros de altura e compleição de atleta, o que lhe dava ampla vantagem no que dizia respeito à capacidade de armazenar álcool – bourbon e gin sendo os seus favoritos.
Já era um escritor de fama quando veio se juntar, na Europa do pós-guerra (a Primeira Guerra, bem entendido), àquela legião cigana de norte-americanos que, beneficiados pelo dólar favorável, sonhavam em ver seu talento artístico desabrochar de repente ao pé da Sainte Chapelle ou sob a inspiração do sol de Cap d’Antibes. Como passaram à história como lost generation, geração perdida, é legítimo supor que o sucesso deles foi relativo.
Hemingway, não – foi tão bom na máquina de escrever quanto de copo na mão e deixou para a posteridade uma trilha em que o álcool coincide com o talento. Na Espanha que ele percorreu com regularidade nos anos 1930 e 1940, insuflado por mais uma de suas bandeiras de virilidade, as corridas de touro, até muito recentemente não havia um botequim digno do nome que não tivesse, a um canto, uma cadeira ou uma mesa que dissesse: aqui bebeu Ernest Hemingway. Em geral, era verdade.
Na Paris de uma époque que já não era tão belle, foi na Closerie des Lilas, em Montparnasse, que ele fez o ninho dele e até hoje rebanhos de japoneses sobem lá dos Jardins du Luxembourg para registrar em suas câmeras o mito na forma de um café-restaurante agora caríssimo e na verdade medíocre.
Mas Hemingway foi o supra-sumo do boêmio, daqueles que fazem a reputação de qualquer lugar pela sua simples presença ali. E, lá na esquina de Montparnasse com o Quartier Latin, ele ainda contava com um impressionante elenco de apoio, os ciganos da literatura com sotaque americano. Uma vez, deixou que se sentasse à sua mesa o dândi Ford Maddox Ford – que ele odiava. Ford perguntou:
– O que você está bebendo?
– Conhaque – respondeu Hemingway.
– Não sabe que começar a beber conhaque é fatal para um jovem escritor?
– Ah, é? Você bebe sempre? Não é sempre que eu bebo.
Hemingway não era dado a sutilezas, mas dessa vez saiu. Em Paris é uma festa (memória que cobre o período entre 1921 e 1926), ele conta que a Closerie des Lilas era conveniente por vários motivos: ficava perto de casa, era bem aquecida, tinha um agradável terraço para o verão e a primavera e não haveria nenhum perigo que aparecesse por lá aquela gente do Rotonde, do Dôme e da Coupole, vizinhos de arrondissement, onde os frívolos iam buscar – como fazem os atuais colunáveis – “uma migalha de imortalidade”.
Já no Closerie era possível ver o poeta Blaise Cendras, “com sua cara quebrada de boxeador e a manga vazia do paletó voltada para cima e presa com alfinetes, enrolando um cigarro com a mão que lhe sobrava”. E, é claro, a bordo de sua tresloucada Zelda, o magnífico Scott Fitzgerald, a quem Hemingway, porém, por puro ciúme profissional, jamais quis ceder o mérito de protagonista.
Com aquela macheza truculenta com substrato de sadismo, Hemingway explorava as inseguranças literárias de um autor que, no entanto, era muito mais requintado do que ele; humilhava Scott, fazia-o sofrer. Quando ficou claro quem era a autêntica estrela das letras, ali, o grandalhão Ernest desafiou o frágil Scott para um tira-teima lá no banheiro do tipo quem é o mais bem-dotado. A história não registra quem saiu vencedor. Mas há uma pista: ao contrário do fanfarrão Hemingway, Scott seria incapaz de alardear publicamente uma coisa dessas.
Entre a Europa e a América, Hemingway bebeu um oceano. Mas o Harry’s Bar – que ele ajudaria a eternizar – só em 1950, depois da Segunda Guerra, é que ganharia dele o privilégio literário. E, em Across the river and into the trees, não mais como cenário, mas na condição de protagonista tão importante quanto o coronel Richard Cantrell, alter ego do escritor, criatura dilacerada entre o amor por uma jovem condessa italiana e a culpa por ter executado 122 inimigos na guerra – episódio que, sabe-se agora, é cruelmente autobiográfico.
Enquanto se encharcava de negrone e dry martini no aconchego dos Cipriani, Cantrell-Hemingway balbuciava com seus botões: “Eu sou um porra de um felizardo e nunca deveria ficar triste por nada”. E, de novo, mergulhava na melancolia, a cantoria dos gondoleiros, lá fora, impregnando a alma junto com os odores desagradáveis da laguna.
Também naquela Cuba em que se refugiaria na década de 1950, em busca da paz para escrever e de marlins para pescar, o bar era seu lar. Recorria aos mojitos da Bodeguita del Medio com sede de retirante, freguês de carteirinha, assíduo e de língua solta. De vez em quando, revezava com La Floridita, onde o forte eram os daiquiris. Tinha um quarto no hotel Ambos Mundos e uma pequena mesa de trabalho que lhe batia no peito e era ali que ele batucava sua Remington, sempre de pé, descortinando a entrada fortificada do porto de Havana. Quando a inspiração secava, Papa Hemingway saía para umedecer o paladar.
Sua escrita era destilada, com punch de armagnac. Mas falava tanto de bebida que não há leitor que não saia de suas páginas trocando as pernas, inebriado. De mais a mais, o superboêmio Hemingway não dá dor de cabeça no dia seguinte.”
Trecho inédito de “Original, histórias de um bar comum”, de Nirlando Beirão
Hemingway era um homenzarrão de quase dois metros de altura e compleição de atleta, o que lhe dava ampla vantagem no que dizia respeito à capacidade de armazenar álcool – bourbon e gin sendo os seus favoritos.
Já era um escritor de fama quando veio se juntar, na Europa do pós-guerra (a Primeira Guerra, bem entendido), àquela legião cigana de norte-americanos que, beneficiados pelo dólar favorável, sonhavam em ver seu talento artístico desabrochar de repente ao pé da Sainte Chapelle ou sob a inspiração do sol de Cap d’Antibes. Como passaram à história como lost generation, geração perdida, é legítimo supor que o sucesso deles foi relativo.
Hemingway, não – foi tão bom na máquina de escrever quanto de copo na mão e deixou para a posteridade uma trilha em que o álcool coincide com o talento. Na Espanha que ele percorreu com regularidade nos anos 1930 e 1940, insuflado por mais uma de suas bandeiras de virilidade, as corridas de touro, até muito recentemente não havia um botequim digno do nome que não tivesse, a um canto, uma cadeira ou uma mesa que dissesse: aqui bebeu Ernest Hemingway. Em geral, era verdade.
Na Paris de uma époque que já não era tão belle, foi na Closerie des Lilas, em Montparnasse, que ele fez o ninho dele e até hoje rebanhos de japoneses sobem lá dos Jardins du Luxembourg para registrar em suas câmeras o mito na forma de um café-restaurante agora caríssimo e na verdade medíocre.
Mas Hemingway foi o supra-sumo do boêmio, daqueles que fazem a reputação de qualquer lugar pela sua simples presença ali. E, lá na esquina de Montparnasse com o Quartier Latin, ele ainda contava com um impressionante elenco de apoio, os ciganos da literatura com sotaque americano. Uma vez, deixou que se sentasse à sua mesa o dândi Ford Maddox Ford – que ele odiava. Ford perguntou:
– O que você está bebendo?
– Conhaque – respondeu Hemingway.
– Não sabe que começar a beber conhaque é fatal para um jovem escritor?
– Ah, é? Você bebe sempre? Não é sempre que eu bebo.
Hemingway não era dado a sutilezas, mas dessa vez saiu. Em Paris é uma festa (memória que cobre o período entre 1921 e 1926), ele conta que a Closerie des Lilas era conveniente por vários motivos: ficava perto de casa, era bem aquecida, tinha um agradável terraço para o verão e a primavera e não haveria nenhum perigo que aparecesse por lá aquela gente do Rotonde, do Dôme e da Coupole, vizinhos de arrondissement, onde os frívolos iam buscar – como fazem os atuais colunáveis – “uma migalha de imortalidade”.
Já no Closerie era possível ver o poeta Blaise Cendras, “com sua cara quebrada de boxeador e a manga vazia do paletó voltada para cima e presa com alfinetes, enrolando um cigarro com a mão que lhe sobrava”. E, é claro, a bordo de sua tresloucada Zelda, o magnífico Scott Fitzgerald, a quem Hemingway, porém, por puro ciúme profissional, jamais quis ceder o mérito de protagonista.
Com aquela macheza truculenta com substrato de sadismo, Hemingway explorava as inseguranças literárias de um autor que, no entanto, era muito mais requintado do que ele; humilhava Scott, fazia-o sofrer. Quando ficou claro quem era a autêntica estrela das letras, ali, o grandalhão Ernest desafiou o frágil Scott para um tira-teima lá no banheiro do tipo quem é o mais bem-dotado. A história não registra quem saiu vencedor. Mas há uma pista: ao contrário do fanfarrão Hemingway, Scott seria incapaz de alardear publicamente uma coisa dessas.
Entre a Europa e a América, Hemingway bebeu um oceano. Mas o Harry’s Bar – que ele ajudaria a eternizar – só em 1950, depois da Segunda Guerra, é que ganharia dele o privilégio literário. E, em Across the river and into the trees, não mais como cenário, mas na condição de protagonista tão importante quanto o coronel Richard Cantrell, alter ego do escritor, criatura dilacerada entre o amor por uma jovem condessa italiana e a culpa por ter executado 122 inimigos na guerra – episódio que, sabe-se agora, é cruelmente autobiográfico.
Enquanto se encharcava de negrone e dry martini no aconchego dos Cipriani, Cantrell-Hemingway balbuciava com seus botões: “Eu sou um porra de um felizardo e nunca deveria ficar triste por nada”. E, de novo, mergulhava na melancolia, a cantoria dos gondoleiros, lá fora, impregnando a alma junto com os odores desagradáveis da laguna.
Também naquela Cuba em que se refugiaria na década de 1950, em busca da paz para escrever e de marlins para pescar, o bar era seu lar. Recorria aos mojitos da Bodeguita del Medio com sede de retirante, freguês de carteirinha, assíduo e de língua solta. De vez em quando, revezava com La Floridita, onde o forte eram os daiquiris. Tinha um quarto no hotel Ambos Mundos e uma pequena mesa de trabalho que lhe batia no peito e era ali que ele batucava sua Remington, sempre de pé, descortinando a entrada fortificada do porto de Havana. Quando a inspiração secava, Papa Hemingway saía para umedecer o paladar.
Sua escrita era destilada, com punch de armagnac. Mas falava tanto de bebida que não há leitor que não saia de suas páginas trocando as pernas, inebriado. De mais a mais, o superboêmio Hemingway não dá dor de cabeça no dia seguinte.”
Trecho inédito de “Original, histórias de um bar comum”, de Nirlando Beirão
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