O show do Kiss e o dog do Charles


O dog paulista do Charles / Foto: divulgação

Nem temaki, um cheesesalada no Marques, talvez. No início os anos 1990, não havia quem morasse da Zona Norte e não fizesse um pit stop obrigatório para matar a fome numa barraca — que virou trailer — que vendia cachorro-quente logo nos primeiros metros do canteiro central da Avenida Brás Leme. Fim de balada, duas, três, quatro da manhã de sábado para domingo e a moçada fazia uma fila de vários zigues e zagues ali.

Eu mesmo encarei essa fila algumas vezes, com os cruzeiros reais, reais, posteriormente, contados, que sobravam na carteira depois do desfalque nos bares da Vila Madalena. A espera na fila do Charles Dog servia, também, para um último balanço da noite (quantos telefones trocados, quantos beijos, quantos foras levados etc. etc.).

Uns quinze anos atrás, depois de o trailer ter sido recolhido pela prefeitura, quem fizesse o mesmo caminho para chegar à ZN pela Brás Leme e olhasse para a calçada da direita, veria que Charles havia prosperado. A barraca e o trailer haviam se transformado numa vistosa lanchonete.

Pois no sábado passado, ao fim do show do Kiss, no Anhembi, o segundo da minha vida (2009 e 2012), resolvi parar no Charles para comer um dogão.

Apesar de toda infra-estrutura, o conforto das mesinhas, balcão e cadeiras nos dois andares, algo não havia mudado: a fila, um efeito direto da qualidade do lanche. Mais veloz que o Tony Kanaan, o funcionário responsável pela montagem das onze versões de cachorro-quente parece, a princípio, não dar conta da freguesia. Mas a fila flui rapidamente, ainda mais se o cliente pedir pelo dog paulista (R$ 9,50),um colosso composto de duas salsichas, molho vinagrete, molho de tomate, purê de batata, catupiry, maionese, ketchup e mostarda. É o default, o campeão de pedidos.

Eu devo ter deixado pelo menos um terço do lanche caído na bandejinha, tal o tamanho do lanche. Uma enormidade, uma dificuldade, um exagero tão irrecusável quanto a pirotecnia, os decibéis, os hits, os clichês e as caras pintadas de um show do Kiss.

Charles Dog. Avenida Brás Leme, 480, Casa Verde, tel. (11) 3966-0286. http://www.charlesdog.com.br

 

Os bares de Neruda

Dos cafés de Paris às brasseries da Borgonha e de Key West à África, o bar do escritor Ernest Hemingway era La Bodeguita del Medio, em Havana — que visitei em 2003 —, onde entornava baldes do melhor mojito do mundo. Ok, podia ser também El Floridita, na mesma Havana Vieja.

Fernando Pessoa, imortalizado em uma estátua em pleno Largo Camões, no bairro do Chiado, em Lisboa, era habituê do Café A Brasileira.

Milton Nascimento, Lô Borges, Beto Guedes e todo o Clube da Esquina foram a todos os bares possíveis do ainda hoje boêmio bairro de Santa Teresa.

Tarso de Castro e seus amigos varavam noites no Antonio’s, em fins dos anos 60, no Leblon. Estivessem em São Paulo, eram facilmente encontrados no bar da churrascaria Rodeio, nos Jardins.

Pode até ser que Pablo Neruda, o grande poeta chileno, tivesse predileção por um ou outro bar ou café, fosse em Santiago, Valparaíso, Paris ou qualquer lugar do mundo. Mas por nenhum desses lugares, tenho certeza, ele dedicou tanto amor quanto aos bares que construiu em suas três casas: La Chascona, em Santiago; La Sebastiana, em Valparaíso; e Isla Negra em El Quisco.

Dessas três, já tive a sorte de conhecer as duas primeiras.

Neruda se dizia também um construtor e de fato o era, afinal, recolhia ou comprava todo tipo de peça, de taças de cristal a sofás, de maçanetas a mapas confeccionados no século XVII. Tudo para decorar suas casas e os bares nelas instalados. O bar de La Chascona, que conheci em 2009, parece uma gruta, graças às paredes de ferro. Na decoração chamam a atenção os sapatos gigantes e as fotos antigas expostas num grande leque de madeira preso à parede atrás do balcão.

Bar de La Chascon: a casa de Neruda em Santiago / Foto: reprodução

Do bar de La Sebastiana, em Valparaíso, Neruda talvez não pudesse ver o mar por causa dos objetos e paredes que separava esse ambiente das janelas da sala, se não me enhgano no terceiro dos cinco pisos da casa. Voltei de lá cerca há menos de um mês e as cores e os excessos daquele delicioso cantinho da casa não me saem da cabeça. Ali, cercado por garrafas, copas e outras tantas tranqueiras, Neruda costumava se fantasiar e se vestir de barman para servir aos seus amigos — era grande anfitrião. Dizem que preparava um drinque com vermute, mas sabe-se também que gostava bastante de uísque e de vinho. Quantos de seus poemas não tiveram inspiração ali?

O bar de La Sebastiana, em Valparaíso / Foto: reprodução

Espero conhecer Isla Negra em breve e, assim, fechar a minha trilogia nerudiana.

Família feliz em Valparaíso e Viña del Mar

De manhã, a caminho de La Sebastiana, Cerro Bellavista / Foto: Miguel Icassatti

Muitos dos turistas que vão ao Chile costumam visitar Valparaíso no esquema bate-e-volta a partir de Santiago, combinando Viña del Mar no roteiro. Honestamente, concordo com o viajante profissional Ricardo Freire, que aconselha que se passe ao menos uma noite em Valparaíso. Uma manhã ou uma tarde não são suficientes para capturar a graça dessa cidade portuária que até a construção do Canal do Panamá era a última parada das embarcações que seguiam do Pacífico ao Atlântico via Estreito de Magalhães.

Alguns amigos fizeram esse esquema vapt-vupt e não a curtiram. A eles, digo: deem uma segunda chance a Valparaíso, mas passem ao menos uma noite por lá. Isso fará toda a diferença para explorar não apenas os prédios históricos, os quais, aliás, foram declarados Patrimônio Cultural da Humanidade em 2003. Na parte baixa e plana é confusa e suja como muitas cidades portuárias sulamericanas — confesso que ainda consigo achar alguma poesia em cenários caóticos como esse.

Pelo Expedia, reservei duas noites no charmosíssimo RC Art Deco Hotel. Esse hotel de design tem apenas dez quartos, um salão de café da manhã no terceiro e último andar, com vista panorâmica para o porto e o casario. Além disso, fica a apenas 300 metros de distância de La Sebastiana, uma das malucas e mágicas casas do poeta Pablo Neruda, que foram convertidas em museus. Está, portanto, em Cerro Bellavista, um dos 42 morros que dominam a paisagem de Valparaíso.

Panorama do porto de Valparaíso a partir de La Sebastiana / Foto: Miguel Icassatti

Nos cerros, com suas casinhas coladas umas nas outras, coloridas, é que a alma de Valparaíso se revela. Você tira um cochilo no quarto do hotel à tarde, com vista para o Oceano Pacífico, e de repente é despertado pelos gritos e risadas da criançada correndo e brincando na rua, ou melhor, na ladeira. Enquanto está despertando, vê o sol se pondo ao mesmo tempo em que as luzinhas das casas vão se acendendo.

Se Cerro Bellavista tem La Sebastiana, Cerro Alegre é dos bares e restaurantes — se bem que ao pé do Cerro Bellavista, a pracinha que dá acesso às pirambeiras Yerbas Buenas, General Mackenna e Ecuador tem um clima muito parecido com o do Baixo Augusta, com direito a punks chilenos a perambular pela rua. No Cerro Alegre, em busca de um lugar para jantar, subi e desci as ruas, empurrando o carrinho da bebê, até parar no Pasta e Vino, talvez o restaurante mais badalado da cidade. Pela cara blasé que o maître fez ao nos receber sem que tivéssemos feito reserva, é bom não dar sopa para o azar. Na cozinha  separada do salão por uma estante vazada repleta de garrafas de vinho, são cozidas massas al dente, com alguns molhos um tanto carregados no creme de leite. Ainda assim, valeu a visita, sobretudo porque Ciça dormiu durante todo o jantar, hehehe, e pelo vinho, o Flaherty 2010, feito com as uvas shiraz, cabernet sauvignon e tempranillo no Vale do Aconcágua pela vínicola de butique criada pelo americano Ed Flaherty, que já foi enólogo da Errazuriz e da Viña Tarapacá. Acho que não há importação desse vinho para o Brasil.

Tem certeza que o Oceano é Pacífico?/ Foto: Miguel Icassatti

Para não dizer que não falei de Viña del Mar, cuja orla é uma espécie de espelho ampliado de Pitangueiras, no Guarujá, caminhamos uma tarde à beira-mar, colocamos os pés nas águas geladas do Oceano Pacífico e paramos para um almoço em Caleta Portales. Esse é, na verdade, o nome de um dos cinco ou seis restaurantes montados lado a lado num calçadão à beira-mar e ao lado de um mercado de peixes no meio do caminho entre Viña e Valparaíso. A falta de conforto do lugar — e, confesso, o susto que tomei ao ver a placa acima na escadaria de acesso à passarela que leva à estação do metrô — foram compensados pelo frescor da reineta, dos camarones al ajillo e do côngrio que Camila e eu pedimos. Receitas simples, a la plancha ou preparadas na grelha, e sem molhos e excessos.

Maria Cecília, princesa que é, tirou uma boa sonequinha enquanto seus pais puderam almoçar com calma. Mas despertou em tempo de colocar os pezinhos de pão na água gelada e azul do Oceano Pacífico.

Família feliz em Santiago

Parque Bicentenario, em Vitacura, Santiago; ao fundo a Torre Costanera Norte / Foto: Camila Antunes Icassatti

Uma fila de carrinhos de bebê toma conta do acesso ao elevador da estação de metrô. Babás e vovós passeiam de mãos dadas com seus pimpolhos pelas ruas. Três casais amassam maçãs e bananas e servem papinha a seus filhotes enquanto tomam o café da manhã no hotel. No restaurante, para qualquer lado que se olhe, veem-se recém-nascidos no colo de um adulto.

Pode ser que o olhar de um neopai, como é o meu caso, esteja viciado nesse universo de carrinhos, bebês-confortos, fraldas e pomadas. Mas acabo de voltar de Valparaíso e de Santiago — na verdade, “acabamos” de voltar de lá Camila, eu e minha pequena Maria Cecília, que aos 5 meses de vida cumpriu suas primeiras horas de voo numa boa —com a convicção de que esse pedaço do Chile está se tornando um destino para viagens em família. Ou que está vivendo um baby boom, graças, quem sabe, ao 44o. posto que ocupa no ranking de Desenvolvimento Humano da ONU, o que o coloca entre o de melhor qualidade de vida na América Latina e Caribe.

Não foi assim tão por acaso que escolhi o Chile como destino dessa viagem de curtas férias, que seria a de estreia de Maria Cecília e o farewell da licença maternidade de Camila. Embora a pediatra não tivesse se oposto à nossa ideia original, de visitar minha irmã na Alemanha, resolvemos lançar mão de (alg)uma dose de prudência e concordamos que 4 horas de voo seria o limite para nossa filhota que, afinal, ainda está amamentando. Sair do país já seria uma aventura e tanto. Além disso, já conhecíamos Santiago e havíamos gostado da cidade (aqui neste post de 2009, o primeiro de três, eu descrevo um pouco daquela viagem), que é plana e organizada.

É claro que, desta vez, a viagem foi mais light, isto é, não fizemos mil coisas por dia. Taí a um primeiro conselho: programe apenas uma atividade por dia. O que vier a mais é lucro.  Bebês de cinco meses — como a minha Maria Cecília — podem ser bons companheiros de viagem mas dormem, acordam, choram, fazem número 1 e número 2 várias vezes ao dia e se cansam.

E essa é a deixa para o conselho número 2: se você está acostumado a economizar na hospedagem, agora que viaja com um bebê trate de desembolsar uma grana a mais para um hotel que seja bem localizado, e que tenha uma boa infra-estrutura, com academia, restaurante, sauna e piscina, por exemplo. Ah, e que tenha um bom banheiro no quarto.

Desta vez nossa base foi a região de Las Condes, a área mais moderna de Santiago. Suas ruas de calçadas largas e uniformes concentram bons hotéis, restaurantes, belos casarões, prédios residenciais e muitos arranha-céus comerciais. Está sendo erguido ali o Gran Torre Costanera (foto), com 300 metros de altura e 64 andares, que será o mais alto da América Latina — não por acaso os locais se referem ao pedaço como “Sanhattan”.

Nosso hotel, o quatro estrelas Plaza El Bosque Park, estava a um quarteirão da Avenida Isidora Goyenechea, onde estão lado a lado restaurantes como o Piola, o Bariloche (onde comi, no primeiro dia, um bom ceviche e um razoável asado de tira), o Nolita e o Miguel Torres, que funciona também como enoteca. Miguel Torres, aliás, é uma vinícola espanhola e uma das pioneiras a produzir bons vinhos no Chile. A comida, para minha frustração, não estava à altura dos vinhos — comi, provavelmente, a pior rabada da minha vida.

A cerca de 15 minutos dali, em Vitacura, fica o Parque Bicentenário, também conhecido como Parque de las Américas. É um espaço espremido entre uma encosta do Cerro San Cristobal e as vias que margeiam o rio Mapocho, com gramados bem cuidados, pouca sombra, mas que nos fins de semana coloca à disposição dos visitantes espreguiçadeiras e guarda-sóis.

Madame Ciça e seu motorista-blogueiro no Parque Bicentenario / Foto: Camila Antunes Icassatti

Outra área verde bacaninha é o Jardim das Esculturas, em Providência, bairro um pouco mais central, também repleto de bares, escritórios e restaurantes. Em 2009, hospedei-me nesse bairro. Pequeno, à beira do rio Mapocho, não vai tomar mais do que uma hora de seu passeio. Fizemos uma pausa na livraria instalada no local, antes de seguirmos para o almoço, que foi no simpaticíssimo El Jardín de Epicuro, na rua Orrego Luco. Nessa arborizada ruazinha há cinco ou seis restaurantes cujos terraços parecem se confundir. Tomei ali o primeiro pisco sour da viagem e comi um delicioso côngrio grelhado.

De volta a Las Condes, três endereços são imperdíveis: 1. a Praça Peru, que tem um parquinho para a criançada passar uma boa hora gastando energia; 2. em frente, no térreo do hotel W, fica a autoexplicativa El Mundo del Vino, megaloja especializada em rótulos chilenos mas que também vende vinhos produzidos em outros países. Há uma filial no shopping Parque Arauco mas esta daqui é muito maior — e mais legal; e 3. o restaurante Happening, especializado em carnes. É uma filial de uma casa argentina, que até faz lembrar o Rubaiyat.

Nesses quatro dias em Santiago, ainda consegui rever o Pátio Bellavista, um centro gastronômico que abriga também umas lojinhas boas para comprar suvenir, cercado por universidades, bares e restaurantes instalados em casas antigas. Mas frustrei-me por não ter podido voltar ao Ligúria, que está em reforma.

No próximo post vou contar sobre Valparaíso, ok?