Salvem os nossos Formigas

Domingo retrasado, depois de desembarcar em Guarulhos, resolvi desviar meu caminho para almoçar no Formiga, o velho restaurante instalado no Largo São José do Belém, ao lado da igreja.

Ao lado do finado vizinho Jacaré e do Peru’s (ou ‘Pirú’, para os locais), que mudou-se da Rua Júlio de Castilhos para a Cajuru, o Formiga formou a animalesca e histórica trinca gastronômica do bairro do Belém.

Dos três, como eu ia dizendo, o Jacaré não existe mais. O Peru’s fechou a porta vaivém, tipo Velho Oeste, do antigo endereço da Rua Júlio de Castilhos— que nos anos 80 acolhia em quase todos os sábados aos craques do Proálcool, lendário time de futsal que dominava a ZL, e do qual eu era mascote — para continuar montando o melhor churrasco (o sanduba) de São Paulo num imóvel maior, onde pode receber pequenas multidões em busca do cômodo bufê self-service.

O Formiga, por sua vez, resiste ao tempo com as mesmas características e cardápio que conheci nos meus tempos de moleque — a batata frita à portuguesa encontra poucas rivais na cidade. Minha filha tomou uma limonada bem docinha, eu bebi uma Serramalte (R$ 8), molhei o pãozinho crocante (fornecido pela Padaria Belga, que fica na esquina do largo com a Cajuru) no saboroso vinagrete, mas me decepcionei com o espetão misto (R$ 88), composto por contra-filé de péssima qualidade, lombo de porco aceitável e linguiça toscana das boas. Com os acompanhamentos, no caso arroz-de-carreteiro e legumes, a porção chega a alimentar três pessoas.

Ventiladores de parede, fotos de propaganda de banana split — da Yopa! — e duas TVs de 20 polegadas, daquelas de tubo, explicam o quero dizer com “resiste ao tempo”.

Em pleno domingão de sol, o salão comprido e escuro estava praticamente vazio. Um dos cozinheiros, da velhíssima guarda, me confessou: “o Formiga está mal cuidado… e já faz tempo”. Mas com certa dose de orgulho, contou-me: “certa vez, o Maluf patrocinou uma pizzada para 1200 pessoas aqui”.

O Formiga existe há 81 anos. Oitenta e um anos. Quantos bares e restaurantes paulistanos chegam dignamente a essa idade?

Precisamos salvar nossos Formigas.

Formiga. Largo São José do Belém, 177, Belém, tel. (11) 6693-1255.

Minuto de silêncio para Paulo Martins

Paulo Martins em ação

 

Na madrugada de hoje, por volta das 4 horas, morreu em Belém (PA) o chef Paulo Martins, que fundou 38 anos atrás, ao lado da mãe, Anna Maria, o restaurante Lá em Casa.

Arquiteto por formação e cozinheiro autodidata, Martins foi um incansável divulgador da culinária amazônica. “A comida paraense é a melhor representação da culinária brasileira, pois toda a sua base é composta de produtos de origem indígena”, afirmou ele a VEJA BELÉM em 2007, ano em que foi eleito pela segunda vez o chef do ano.

Diante da exuberância de recursos naturais ao alcance de suas mãos ou da ponta do anzol, Paulo Martins usou frutos, temperos e pescados regionais para conquistar a admiração de seus clientes e colegas de profissão. Em 1999, criou o Festival Ver-o-Peso da Cozinha Paraense, evento anual que já reuniu em Belém cozinheiros como o paulista Alex Atala e a fluminense Flávia Quaresma.

A amizade de Martins com Alex Atala, aliás, começou em meados daqueles anos 90. O Lá em Casa tornara-se conhecido por integrar a Associação da Boa Lembrança, da qual fazia parte o Filomena, de São Paulo, onde Alex começava a despontar. “Liguei para ele, me apresentei e pedi dicas, pois estava começando a usar ingredientes amazônicos no Filomena”, contou Atala em entrevista ao blog.“Ele foi sempre muito generoso, um bandeirante da cozinha brasileira”.

Foi Alex quem apresentou o chef Ferran Adrià a Paulo Martins. Na Espanha, o catalão cedeu a cozinha de seu laboratório à dupla e em retribuição provou alguns pratos preparados com os 30 quilos de produtos amazônicos que Paulo e Alex levavam na bagagem. “Ele gostou de tudo, até que, por último, experimentou o jambu”, contou Paulo Martins em um bate-papo com a culinarista Bettina Orrico, da revista Claudia Cozinha, em 2006. De fato, em seu livro de receitas editado em 2008, Adrià incluiu uma receita com tucupi, depois que visitou Paulo Martins em Belém.

Entre as geniais criações creditadas a Paulo Martins está o hadoque paraense, que nada mais é do que a gurijuba, um peixe barato, cuja carne sempre fora desprezada. Comida de pobre, dizia-se. Decidiu banhá-lo numa salmoura com urucum e defumá-lo. Pronto, surgia assim uma nova iguaria e o preço da gurijuba nas peixarias belenenses nunca mais seria o mesmo…

Estive três vezes no Lá em Casa, já no ponto situado na Estação das Docas, belíssimo complexo gastronômico e cultural às margens da baía do Guajará.

Sei que se comenta que no novo Lá em Casa não se come tão bem quanto nos endereços anteriores, primeiro a própria casa em que Paulo morava, e o seguinte, no bairro do Umarizal.

Esse é um comentário irrelevante quando o comensal tem à mesa, diante de si, um surpreendente menu degustação criado por Martins, como o corridinho de peixe.

Trata-se de uma sequência que começa com uma posta de pirarucu fresco na chapa e segue com picadinho de tambaqui, hadoque paraense, filhote no tucupi, pescada amarela à milanesa, arroz de jambu, farofa de pirarucu e feijão-manteiguinha de Santarém. Inesqucível.

Na manhã seguinte, estava eu lá no Mercado Ver-o-Peso em busca de um quilo de feijão-manteiguinha, coisa que faço toda vez que volto a Belém.